Joël Bernat : “eu é mim” : Prefácio para Bernard Andrieu : A Carta do Pai. Sistema de reflexão cõncava

O que vocês irão ler não compõe, sobretudo, Memórias ou Lembranças. Ao invés disso trata-se de uma busca que prolonga os trabalhos empreendidos por Bernard Andrieu depois de mais de trinta anos. Busca, aqui, um tanto particular, pois ela coloca à frente ou de maneira oficial, poderíamos dizer, o pesquisador e o corpo do pesquisador no objeto de pesquisa. Mas, por que tal démarche, especialmente quando o ideal é supor que o pesquisador ou do cientista se abstraia, que se faça o menos presente possível? Muito bem, porque isso é apenas um ideal que se eleva de uma espécie de desafio que parece humanamente impossível: podemos verdadeiramente nos exilarmos de si mesmos, olhar e pensar o mundo sem nenhuma doxa ou visão do mundo, sem nenhum a priori? Isso parece impossível, então melhor seria buscar as variáveis pessoais que influenciam e orientam nossos pensamentos e percepções.

Enigmáticas questões

 Aquilo que nos chega quando somos tomados por um tipo de questionamento a respeito do que somos e do que fizemos hoje: da onde vem, como se desenha em nós, há um plano?  Subentende-se que, se nos sentimos bem, é em nós que isso se passa. Mas, a origem da sensação permanece misteriosa e gostaríamos de capturar o sentido que é pressentido e sentido como predeterminante. Mas, ao retornar sobre nosso percurso de existência, nada, ou muito pouco, vem fazer eco a nossa questão…O enigma se desloca então: se a resposta não está em nós, ela estaria ao longo dos lugares que percorremos, das pessoas que cruzamos e, in fine, em nossos pais e no que eles nos transmitiram? Essa seria a hipótese de que seus destinos teriam produzido o nosso. Mas, a questão permanece obscura e buscá-la nas genealogias também não responde.

Se conhecêssemos vários de «mim », vários aspectos e registros de nossa existência, eles também não responderiam à questão e isso nos deixa em dificuldade quanto ao que formou o nosso “eu”[1]? Um « eu » que se supõe conhecer nossa orientação ou mesmo nosso destino, uma espécie de espinha dorsal ou, melhor ainda, de fil rouge[2]: pois, nos momentos nos quais nos retornamos sobre nossa existência, sentimos que há um fio condutor, mas que não cessa de escapar ao nosso controle – ou pelo menos de se inventar algumas histórias. Qual a origem desse fio vermelho? De onde vem nossa paixão, o que nos organiza e nos orienta, as vezes de forma imperativa?

Assim, do psíquico (filosófico) ao corporal, via cérebro (tal como um terceiro, o barqueiro entre psique e soma), eis aqui um trajeto que Bernard Andrieu fez (e continua a fazer), mas que também faz Bernard Andrieu: por que este aqui e não um outro?  Seguramente é esse caminho – e essa busca – que se engaja e que ele nos engaja, inicialmente com o livro No corpo de minha mãe[3] e agora com este aqui: A Carta do pai.

 A esperança e a busca (mítica) de um lugar, objeto-fonte

 Nessa busca, a reflexão primeira é frequentemente aquela da existência de um lugar, um acontecimento que marcaria data, que faria sentido e, enfim, a existência de um plano ou destino. Essa reflexão é sedutora, pois, se assim fosse, poderíamos experimentar um certo controle daquilo que nos guia e, sobretudo, a satisfação de uma unidade de si: “Ah, tudo vem de lá! ”. O que nos mostra também o quanto procuramos um sentido, certo, mas um sentido único (sempre com a preocupação de que seja controlável), em uma cena única. Quando, com frequência, são nos pequenos detalhes, nos fragmentos que alguma coisa se faz ouvir.

Nos vemos aqui sensíveis à ideia de uma geo-localização de nossa história, ou ainda a pesquisa de um contexto. Mas, essa ideia suporia a existência de um lugar particular onde se atariam e figurariam uma existência e um sentido. Isso ressalta de fato de um pensamento mágico e animista que acredita que esse lugar ou objeto guardariam neles mesmos o sentido… “Eu passei por lá, eu nasci aqui, etc.”. Sim, mas então? Reencontramos aqui a crença que o “de onde” (eu venho, eu sou) diria algo do “quem” (eu sou, eu me tornei): ou seja, que o lugar (que é conhecido) é suposto como o que dá uma identidade ao ser (que é desconhecido e que permanece). Claro, nós somos as crianças do nosso século: isto determina apenas uma forma externa (modo de pensar, de dizer, etc.), mas nada diz do ser interno.

Essa forma de hipótese é empurrada, impulsionada pela ideia de que existiria uma predeterminação externa, um “mito de origem”, uma outra variante do pensamento mágico que supõe que uma entidade pensante predestinou nossa existência, o que é ao mesmo tempo tranquilizador (alguém ou algo vela acima de mim e de meu pensamento) e angustiante: não há então livre arbítrio…

Por exemplo, Bernard Andrieu nos relata a história, sua história, com esse avô que ele sempre conheceu como “amputado”, “lembrança” da Grande Guerra 14-18. Mas, essa marca sobre o corpo indicaria um lugar (“eu estive”), marcado no vivo do corpo por um membro ausente e por isso mesmo bem mais visível: seríamos tentados a ver nisso um ponto de partida quanto as pesquisas do neto. Mas, sobre isso, o avô nada diz, o que deixa a criança “no exterior” e entregue a seus próprios pensamentos.

 Mas, há um outro elemento, bem menos visível, um caderno de desenho que o avô fez durante essa guerra: seria ali que se diz alguma coisa de mais intima, mais interior, um “eu” indicado, quase sussurrado, por seus desenhos que, tendo sido produzidos nesse lugar de guerra, dizem algo de fora do lugar, mas bem mais dissimulado? Aqui também o silêncio sobre esses desenhos eróticos (que não seriam sem influência sobre sua filha e seu neto – ver o livro No corpo de minha mãe), diz o que ele não diz, o que ele é, e não a respeito de lá onde ele estava. De fato, o que desvelam esses desenhos encobrem ainda mais o autor… ou seja, o jogo habitual de toda representação: ela indica de uma parte, mas mascara de outra parte.

Esses enigmas, se não são desvelados, permanecem, não menos motrizes, quanto à reflexão e confortam, entre outros, o corpo como topos, mas um topos dinâmico, movente, com sua memória e sua língua própria, não verbal.

É o que nos mostra Bernard Andrieu.

 O movimento, incapturável ?

 O que isso deposita em nós, o que está nessa busca ou interrogação? Em todo caso, isso me coloca em movimento, o que em oposição com a busca de um lugar (guerra), de um objeto (o desenho, a perna): esses lugares são pontos de partida, suas figurações, mas o sentido não está neles. Então, talvez ele esteja no movimento, no “caminho” que fazemos ao fazê-lo[4], o que faz escrever Bernard Andrieu: «o caminho ao invés da estação».

Então, esses enigmas, são lamentáveis ou necessários? Por exemplo, quem é esse homem que se mantém escondido atrás do nosso pai, quem é essa mulher escondida atrás de nossa mãe? Atrás dessas figuras familiares vivem humanos misteriosos dos quais não sabemos nada e dos quais entrevemos um fragmento quando, por exemplo, fazemos a triagem de “seus pertences” após seu falecimento.

Qual é o seu íntimo? É esse desconhecido quem faz o destino para nós (porque nós não saberíamos ou tão pouco quais foram suas intimidades) ou é essa busca mesma que faz o destino ao nos colocar a caminho? Em todo caso, são os silêncios, as ausências, os ocos, que, lá ainda, são operantes.

 Quem sou eu ? Que eu? Ou o enigma necessário?

 O movimento da busca, e o sentimos na leitura de A Carta do Pai e dos pais, passa aqui pela escrita da qual Bernard Andrieu nos diz que se trata de escrever para não reproduzir, ou seja, extrair-se das predeterminações, liberar-se (por exemplo da ideia de dívida que amarra e, mesmo, aliena). Escrever, não para reembolsar, homenagear, etc., o que seria apenas Lembranças ou Memórias, mas para tomar consciência e sair das repetições inconscientes: ou seja, perlaborar, fazer a emersão.

Por exemplo, capturar que somos impregnados do modo de pensar materno, de um modo de pensar paterno diferente e assim se desembaraçar para inventar sua própria reflexão: o que permitiria responder a questões tais como: quem escreve e sobre quem? Quem de mim – ou quais de mim- ou de outros em mim, fala nesse momento?

Perlaborar para perceber que é mesmo um indivíduo que cria uma espécie de mistura pessoal das heranças, tese que Freud justifica frequentemente por uma citação de Goethe: “ O que teus antepassados te deixaram como herança, / se tu queres possuí-lo, ganhe-o”[5].

É o que faz, nesse texto, Bernard Andrieu.

 Para concluir…

 Haveria dois tipos de autobiografia: aquela dos “mim”, resultando um relato de fragmentos e aquela do “eu”, mais unitária ou linear. No melhor dos casos, a autobiografia ofereceria uma cena onde, desdobrando as aventuras dos “mim”, tentamos encontrar o denominador comum, algo que poderia enfim se escrever “eu”, um fio vermelho, uma coluna vertebral. Pressentimos que ele detém as razões de nossas vias na vida, os “porquês” do que nos aparece frequentemente como errâncias assim como uma chave interpretativa dos acontecimentos vividos. A cena, aqui, é aquela do corpo.

Essa questão sobre nosso « destino » ou orientação, que nos colocamos, ou ainda que ela nos capture, produz, esquematicamente, dois extremos:

 –   Ou o sujeito é capturado e submetido, de modo mais frequente, passivamente, pela impressão que é a presa de repetições, sempre as mesmas, ou que ele nada sente daquilo que lhe acontece: nesse caso, as representações que chegam traduzem uma prova do aprisionamento ligado ao sentimento que uma força enigmática, superior e exterior, que pilotaria a existência conforme um desenho ignorado pelo sujeito. As representações dessas forças são, por exemplo, o fatum ou o destino, que vão se ligar a outras tais como: a impressão do efeito de um contexto cultural, a história familiar, etc. ou ainda a Natureza ou os genes (“eu nasci/ faça assim”), potências “externas” tais como os deuses ou os astros, tantas formas que traduzem a prova de uma potência misteriosa acima de si – e da qual nós seríamos um fantoche – mas, em todo caso, uma organização pensante, que sabe, ela, nossos porquês. Mas, nesse caso, não poderia haver uma verdadeira autobiografia pois o “eu” é projetado ao exterior;

 – ou ela opera após o acontecimento, ou seja, o « eu » me coloca questões ou me coloca a questão quanto a minha existência: é um retorno sobre si, ativo, no sentido que me coloco em questão: um “eu” tenta capturar os “mim”. Nesse caso, as interpretações que surgem são à maneira do fio vermelho ou a coluna vertebral, o caminho de vida, etc., representações que tentam restituir algo do sentimento de que haveria um “condutor” interno, um assento ou um projeto, embora ressentidos como enigmáticos; pois se o projeto pindárico (tornar-se si mesmo) é evidente, permanece o fato de que o eu é, ele, enigmático. Mas, isso coloca em movimento.

O texto de Bernard Andrieu testemunha isso, sobre o plano autobiográfico, mas mais que isso também: como um pensamento se desenvolve, se constrói e se continua passando pelo ser mesmo do pesquisador, sua elaboração. Esse desvio, por outro lado, permite conquistar novas dimensões nessa difícil questão: como pensar o/nosso corpo, mesmo “pensar corpo”, senão como ele nos pensa e, ainda, afinar mais e mais essa nova démarche que é a emesrsiologia.

É o caminho notável que segue e persegue infatigavelmente Bernard Andrieu.

Joël Bernat

 

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[1] Retomo aqui a oposição que faz Nietzsche entre o « eu » e o « mim » para quem eles tem “relações veementes”. E apenas um terceiro permite sair dessa relação conflituosa que mantemos conosco mesmo. Ver Friedrich Nietzsche, Ainsi parlait Zarathoustra [Assim falou Zaratustra] § «Do amigo»: « Eu e mim estão engajados em um diálogo veemente. Como seria suportável se não houvesse o amigo? » […] « Para o solitário, o amigo é sempre um terceiro; o terceiro é o flutuador que impede o diálogo dos dois para mergulhar nos abismos».

[2] Metáfora de Goethe, em: Les affinités électives, Folio – Gallimard, 1980, partie II, chap. 2, p. 181: « Na Inglaterra todas as cordas da marinha real são atravessadas por um fio vermelho que não saberíamos fazer desaparecer sem destruir o trabalho do cordeiro que as enlaçou dessa maneira para provar a todo mundo que essas cordas pertencem à coroa da Grã-Bretanha. É assim que, através do Jornal de Otílio, reina o fio de um terno concurso que une as observações e as sentenças e faz de seu conjunto um todo que pertence especialmente a essa jovem! ».

[3] Bernard Andrieu, Dans le corps de ma mère / No corpo de mihna mãe, Ed. bilingue Français/Brésilien, traduction et préface de Petrucia da Nobrega, Ed. IFRN,  Natal, 2015.

[4]  Ver Katmandou, Compostela, etc e outras viagens iniciáticas que levam frequentemente à descoberta de uma parte de si, quaisquer que sejam os lugares de partida ou chegada.

[5] J. W. v. Goethe, « Was Du erebt von Deinen Vätern hast, / Erwirb es, um es zu besitzen », in Faust I & II, Paris Flammarion, Paris 1984, vers 682-3 de «A noite »; também traduzido: « A herança que vem de teus ancestrais, /é necessário adquiri-la para melhor possuí-la». Ou ainda: « O que tu herdaste de teus pais, / Adquire-o a fim de possuí-lo» Chez Freud, voir : Totem et tabou (1912-1913), Pour introduire le narcissisme (1913), Abrégé de psychanalyse (1938).

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